domingo, 1 de junho de 2014

Trova é coisa de banquete

“Pois bem, eu sou aquele com quem algo acontece.”, dizia eu, personagem. A narrativa se elaborava à minha volta e eu falhava na leitura das entrelinhas. Surpreendi-me, então, quando o sibilar de uma rima atravessou as taças de cristal. Pulou o porco assado. Desviou das batatas. Sobrevoou a salada. E chegou a mim. Caí. Engasguei. Sufoquei. Levantei.
“Trova é coisa de banquete!”, berra alguém do outro lado da mesa. Quem? Os presentes movem seus olhos para cima do coitado. É bigodudo. Encarar deixa de ser ação indiscreta no momento em que a discrição torna-se coisa de bar. Entende-se que estamos jantando com classe. Entende-se que isso é mesa de festa e não mesa de bar. Não há lugar para a minha trova popular. Faço o maldito esperar. Trovar as palavras que acabei de engolir seria sintoma de bulimia literária. E num banquete como esse, alimento-me de conversas.
Terminei meu pudim. Olhei para o bigodudo. Não berrei. Não xinguei. Prometendo a mim mesmo que seria a única vez, trovei. “Trova é coisa de bar! Em um banquete devemos comer e conversar!”
Minha trova permaneceu suspensa no salão sob o atento observar de um bigode contraído. Sabia que de resposta não receberia nada. Trova de banquete é canto a ser moído e deglutido. Sucedeu-se a história do bigodudo insaciável.
Ocorre que de um simples aperitivo o maldito vislumbrou três pratos. Pedia mais e mais. Providenciada a entrada, ele já deglutia o prato principal. Era um doente. Diagnóstico: Insatisfações vocabulares.
Em sua insuficiência, observei-lhe os movimentos. Delicados, porém ágeis. Rebuscados, porém afáveis. Seus olhos transmutavam o desdém do julgamento alheio à inatividade voluntária de minhas cordas vocais. A vocalização de uma rima, ainda que discreta, era perigosa naquela situação. No silêncio, ouvia-se todos a mastigar minha trova. O maior dos ruídos, no entanto, morava no vazio de um hálito incógnito, mudo.
Não se alimenta?
Não se atormenta?
Não se acalenta?
Banquetear uma trova, por mais que breve, atribui-lhe peso. Inestimável. A rima pesa no intestino. É alimento. Diz-se que sacia. Mas invalida qualquer imediatez que uma trova bem feita possa vir a ter. Respostas instantâneas dão lugar a uma artificialidade transgênica (a então chamada intelectualidade nos banquetes). Como engolir o artificial sem antes mastigá-lo?  
“Trova é coisa de banquete! Trova é coisa de banquete!”, o bigodudo gritou.
Finalmente.
***
Os arquétipos masculinos mais usuais do século XX atribuíam virilidade a qualquer homem que portasse um belo bigode em seu buço. Virilidade. O curioso no destrinchar de uma palavra vazia reside, precisamente, neste espectro vazio com aparência de cheio. Sou viril!, bradaria um bigodudo. Determine viril!, replicaria um pedestre ausente da expectativa de ser respondido. Eis a diferença entre a eloquência e a pertinência. Alega-se levianamente a importância de um bigode. Descarta-se, subitamente, a fragrância de uma estrofe.
Regressemos à nossa mitologia, arquitetura da oposição. A sociedade elabora os mitos na teoria. Nós os produzimos na contramão. Aquele banquete fora minha fratura existencial, deturpara minhas ideias – até então paradoxais – sobre a leveza e o peso de viver. De rimar. O bigodudo deglutira o meu mundo sem precisar sequer de um palito de dentes. Os restos espalhados naquela mesa de banquete enojavam-me em sua complexidade. Minha paz estava de mudança. Era a mais nova residente daquele bar de frente para a praia. Sim, passara a residir em um bar. Só precisava de um bom drinque à beira-mar.
Ao término daquele sofrimento, o bigodudo viera falar comigo. “Um breve lembrete... Trova é coisa de banquete!  Você sabe usar a língua para mais do que lamber o leite que escorre das tetas de sua mãe. Estou indo para o bar aqui em frente, me acompanha? ”.
***
Esqueci-me do anfitrião e desci as escadas conversando com aquele bigodudo eloquente. Vadiava mentalmente. Permeava de forma curiosa os atos daquele homem. Deglutido. Ou moído? Estranha presença amigável naquela realidade que tratava de me esmagar a cada passo que dava em direção ao paradoxo.
“Como fez aquilo?”, minha voz ergueu-se de modo inesperado, até mesmo para mim.
“Aquilo o quê? ”, surpreendeu-se o bigodudo.
“Aquilo que fez lá em cima. Deglutir uma trova em pleno banquete. E essa frase que não cansa de repetir.... ‘Trova é coisa de banquete’ ...”
 “Ah... aquilo...”
“É, aquilo!”, gritei sem importar-me com qualquer outro ouvinte.
“Calma... não existe necessidade alguma para o senhor se excitar. Eu convidei você para beber alguma coisa no bar... pois é o que faremos! Uma vez lá, terei todo o prazer em lhe explicar porque trovar é canto para todo lugar. Diante do peso da vida, só a trova tem poder pra salvar...”, dito isto o bigodudo apertou o passo e adentrou o saguão principal. Saímos do edifício. Viramos a esquina. Ruas vazias. Sombras engoliram seu bigode. Sem face, o homem retirou um facão de seu casaco. Rápido. Preciso. Conciso.
Minha língua.
O maldito levara minha língua.
Lembro-me de desmaiar sob uma visão obscura. O bigodudo tomando minha língua em uma das mãos. Retirava do bolso esquerdo um plástico bolha no qual envolveu, delicadamente, meu pesado paladar. Colocou-o em seu casaco, abdicando da oportunidade de carregar uma cuba vazia. Preenchia-a no ato. Seu peso o prendia ao chão, em passos largos e arrastados. Sua leveza concedia-lhe asas em sopros rasos e insaciados. Um assobio trovado atravessou o ar. Pulou a lua crescente. Desviou das estrelas. Sobrevoou a cidade. E chegou ao próximo milênio sem esperar encontrar nada daquilo que não fora capaz de levar consigo.

sábado, 15 de março de 2014

Voo de Dalí

           Flutuar. Verbo intransitivo. Em outras palavras, vociferar independência sujeitado às amarras de um sujeito indeterminado. Um sinônimo: voar.
Em meu voo, flutuo. Acorrentado. A quem?
Meus olhos se movem sobre os grilhões, como que tentando localizar a vida a eles atribuída de tempos em tempos. Meu mestre (no presente). Minha verdade (no agora).
O ovo quebra. O sol nasce. Dalí, pássaro se espanta.
Sobrevoo-o sendo auxiliado pelos traços de um balão algodoado. Céu cheio. Céu nublado.
            Subitamente, as amarras ferem-me o flutuar. Caio no descaso em meio ao acaso. Caio no mar.
          Torno-me homem e nau. Marionete de artistas de outra era. Ergo-me em busca do ar. Acabo por encontrar cordas e velas que impõem velocidade ao meu corpo. A metamorfose do tempo presente corrobora a transmutação do morto em matéria viva. E somente quando as velas atreladas ao mastro, que de minhas costas nasce, tornam-se borboletas prontas para alçar voo, transformo-me em caravela. Óleo sobre tela.
            TERRA À VISTA!, bradam as borboletas com o farfalhar de suas asas.
            Nas Dunas.
Encalhei.
            Sozinho.
O pano se levanta. A maré abaixa. O deserto se alimenta. Não resta nada.
O anacronismo do nada edifica a história do infinito. Aloca-se o efêmero indivisível em forma de massa de modelar. Violinos, canhões, cavalos e sensações. Relógios da ausência do tempo derretendo. Alterando seus ponteiros em forma e tamanho. A alomorfia do objeto passa a ser a eterna certeza de indivisão.
Deformar toma forma em um rosto vazado. Dos orifícios, o repetir de imagens grita sensibilidade. Sentir o medo do constante. A visão de rostos carregados de um olhar inexpressivamente expressivo. De novo. E de novo. E de novo. Amedrontado, dou alguns passos para trás. Percebo o derreter de minhas pernas. Tropeço. Levanto. Derreto. Desmaio.
Inconsciente do mundo concreto, desperto.  
TVUUU! TVUUUUUU!! TVUUUUUUUUU!!!
Tubas. Tumbas. Tumbas. Tubas.
Olho o corte. O corte no olho. A cisão completa.
Agora posso ver.
O andar dos gigantes sobre a terra. Sonoro titubear de tubas. Particular heterogeneidade de cores animais. O cinza selvagem e o dourado civil. O paradoxo de um dissidente.  
A sobreposição de imagens ao meu redor configura uma realidade abstrata. A miragem sensorial. A cena que exala o odor do real.
Atravessadas as tumbas, deixo pra trás minhas prévias verdades. A quietude do verde pasto adiante me comove. Altas e firmes, pregadas em grandes estruturas cônicas encontro minhas borboletas. Perdera-as no mar, mas elas encontraram seu caminho para a terra. Ah, estão em moinhos afinal! Moinhos nesta campina, que dependem apenas delas para funcionar. Afinal, presas ao chão minhas asas estão a voar.
Porém há uma longe. Ao longe de tudo.
A borboleta solitária. Díspar. Sem amor. Sem carinho. Sem corpo.
Salvador. Encorpado. Caminho até a solidão. Sem uma palavra, enlaço-me a ela e perpetuo-me no casulo da nova era. Páginas correspondem à cama de que um dia me utilizei. Durmo em livros que um dia salvarei.   

            

domingo, 9 de março de 2014

Cartas


           Sobre cartas e contextos. Sobre palavras e amantes. Diante do textualizar do diálogo interminável de algum enamorado, proponho o emudecer das cartas.
          Exterminar qualquer codificação de uma linguagem instrumentalmente primitiva. A arbitrariedade de palavras vazias torna-as insuficientes na arte de fazer mínima referência ao aspecto físico do objeto amoroso. Percebe que falo de cartas de amor? Aos outros tipos de carta nutro apenas desprezo: tentativas estúpidas de elaborar um sentimento, na maioria das vezes, inexistente. O amor sobrevive.
         Sobreviver. Outra palavra vazia cujo significado revela plena anulação. Sobreviver esvazia. O sujeito e o objeto amoroso.
            Cartas são doutrinas esvaziadas do pudor do olhar. Algumas palavras carregam consigo a tola ideia de que, uma vez escritas, estarão permanentemente cravadas na eternidade. Omitem a descaracterização da imagem. A morte das lembranças de um passado distante para dar lugar às palavras de um presente imaginário. O objeto amoroso passa a ser o cavaleiro inexistente de Calvino. Vestido em sua armadura incólume, cuja função é sustentar o corpo invisível de um amante depravado pelo tempo e a distância. A maresia dos oceanos planeja um oxidar lento e discreto para os futuros enlatados. E com o passar das eras, a escrita transmuta-se em ferrugem.
           O bronze da palavra é superposto pelo ouro da sensação. Coexistindo e, simultaneamente, coagindo sobre si mesmos. Vivenciando a virtuosa dialética da carta de amor. Cujo caráter perpetrado do vazio da codificação de um sentimento é expressado por completo na simplicidade do ato de escrever uma carta.
           Relacionar-me com minha escrita é relacionar-me com meu amante. Dependentes mútuos. Entregar-me ao seu acaso e deixar o rolar dos dados convencer-me da sutileza de um belo amor. Que vingue o mito do amor! Que vingue o mito da carta! E, por fim, que revoguemos o mito da escrita que nos confere segurança!
          Escrever cartas de amor é permitir que as palavras nos enganem. Plurais como são. Assinam embaixo do expressionismo contemporâneo, colocando um ponto final onde se inicia nossa humanidade. True deceivers, it doesn’t matter in what language we are speaking. They are allways watching us... words... our most intimate lovers...

sábado, 1 de março de 2014

Máscaras


                Sob as máscaras da realidade meu discurso cai no descaso. São letras aquelas lá no fim do poço? Sim. As letras que eu usaria para fugir deste hospício. Como meu amigo diria: “I was h(r)opeless.”
            Sob a faceta de um mundo unitário a escolha de viver em um hospício não me parece loucura tamanha. Reprimidos, oprimidos, subjugados destituídos. Descrita nossa realidade parecemos pouco. Somos poeira de verbo, não de Beckett, mas de Ocidente. Condenados à reclusão, pois da vida fomos capazes de retirar tudo: vida e morte, apenas para começar.
            Sob a luz estarrecida de manhãs felizes permito-me comungar meus prazeres com Tristeza, senhora que vive no quarto do outro lado do corredor. Ela caminha esquisito quando está sozinha. O que me causara medo em um passado distante. No entanto, esse sentimento passou quando percebi que – ao meu lado – suas pernas como que curavam-se milagrosamente e seu andar restituía a vivacidade de seus Dias Felizes. Winnie?
            Sob a escuridão de noites melancólicas aperto-me pelos corredores em direção à ala dos deficientes mentais. Ando tendo preferência pelo paciente a que os interinos denominam Albee. Os médicos o diagnosticaram como: suscetível à tendências absurdas. Tratam-no, portanto, como um ser sem inteligência. Seu senso de humor dificulta a compreensão plena de que haja, ao menos alguma, seriedade em sua fala. Eterna alegria de um sádico. Desencadeador da desordem humana. Ideia paradoxal quando ao lado da experiência de plenitude à qual ele me encaminha. Um possível reencontro à realidade de um eu contemporâeno? Talvez. Nunca esquecerei aquela musiquinha que ele sempre cantava: “Quem tem medo de Virgínia Woolf? Virgínia Woolf? Virgínia Woolf?”
            Sob a dor de meu contato com outros pacientes reflito sobre a minha condição. Não sei se encontro-me presa a uma âncora. Mas lá fora sinto-me presa a um navio! Como posso deixar esse lugar me vencer?! Permitir a acepção de um mundo o qual, em primazia, nega a dualidade inerente à toda e qualquer pessoa. Dor.
            Sob a realidade deito meu corpo. O hipnótico Doutor Hoffman coloca-me sob os cuidados de seu assistente. O homem da areia. Para onde foram os outros pacientes? Só resta a mim? A última a enfrentar o inevitável lamento de nosso mundo dual? Quais serão os ícones estes que permeiam meus sonhos de defeitos e simbologias? À partir de agora conduzo-me aos pacientes mais subjetivos desse hospício. Sigmund e Friedrich. Nessa eterna paralização do real, na qual o social se dissolve e escorre como água derramada, o homem sofre a pequena morte do gozo, que, no auge do desejo, lembra-se de tudo que o une á morte. Eis que aquilo que não o mata, o fortalece. Passo, finalmente a existir onde não sou. Existir no outro. Caem, então, as máscaras da realidade e colocam-se as máscaras da experiência alheia. Incessantemente.
            Sob o inconsciente ascendo-me à inteireza do ser.