domingo, 9 de março de 2014

Cartas


           Sobre cartas e contextos. Sobre palavras e amantes. Diante do textualizar do diálogo interminável de algum enamorado, proponho o emudecer das cartas.
          Exterminar qualquer codificação de uma linguagem instrumentalmente primitiva. A arbitrariedade de palavras vazias torna-as insuficientes na arte de fazer mínima referência ao aspecto físico do objeto amoroso. Percebe que falo de cartas de amor? Aos outros tipos de carta nutro apenas desprezo: tentativas estúpidas de elaborar um sentimento, na maioria das vezes, inexistente. O amor sobrevive.
         Sobreviver. Outra palavra vazia cujo significado revela plena anulação. Sobreviver esvazia. O sujeito e o objeto amoroso.
            Cartas são doutrinas esvaziadas do pudor do olhar. Algumas palavras carregam consigo a tola ideia de que, uma vez escritas, estarão permanentemente cravadas na eternidade. Omitem a descaracterização da imagem. A morte das lembranças de um passado distante para dar lugar às palavras de um presente imaginário. O objeto amoroso passa a ser o cavaleiro inexistente de Calvino. Vestido em sua armadura incólume, cuja função é sustentar o corpo invisível de um amante depravado pelo tempo e a distância. A maresia dos oceanos planeja um oxidar lento e discreto para os futuros enlatados. E com o passar das eras, a escrita transmuta-se em ferrugem.
           O bronze da palavra é superposto pelo ouro da sensação. Coexistindo e, simultaneamente, coagindo sobre si mesmos. Vivenciando a virtuosa dialética da carta de amor. Cujo caráter perpetrado do vazio da codificação de um sentimento é expressado por completo na simplicidade do ato de escrever uma carta.
           Relacionar-me com minha escrita é relacionar-me com meu amante. Dependentes mútuos. Entregar-me ao seu acaso e deixar o rolar dos dados convencer-me da sutileza de um belo amor. Que vingue o mito do amor! Que vingue o mito da carta! E, por fim, que revoguemos o mito da escrita que nos confere segurança!
          Escrever cartas de amor é permitir que as palavras nos enganem. Plurais como são. Assinam embaixo do expressionismo contemporâneo, colocando um ponto final onde se inicia nossa humanidade. True deceivers, it doesn’t matter in what language we are speaking. They are allways watching us... words... our most intimate lovers...

2 comentários:

  1. Isso me inspirou até a escrever outras cartas, como sou fascinada por cartas! Ora, pensar nelas com um carinho a mais, ou racionalidade com essa tua prosa é uma dádiva. Como já disse, você escreve tão bem que me faz criar tantas possibilidades e interpretações, ao mesmo tempo que fico próxima com o escrito, íntima. A carta me leu, quem sabe ela seja meu amante. Percebe que eu falo sobre admiração?

    ResponderExcluir
  2. Na simplicidade de um comentário a sua prosa me encanta... aos elogios declaro apenas o meu prazer em escrever para os que amam, como eu, toda e qualquer manifestação de intimidade em palavras...

    ResponderExcluir